quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Mas, enfim, seria a psicanálise uma ciência?

 “A ciência, se a examinarmos de perto, não tem memória. Ela esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão de verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise" (Lacan, 1965/1998, p. 884).

OBS: Esse texto é continuação do post anterior. Se você ainda não leu a primeira parte, clique aqui antes de prosseguir.


O surgimento da ciência moderna tem suas condições de possibilidade em determinado momento histórico que é chamado por Foucault em A Hermenêutica do Sujeito (2006) de “momento cartesiano”.

Ao afirmar a possibilidade de aceder ao conhecimento através da aplicação de um método, Descartes abre espaço para uma nova configuração das relações entre sujeito e verdade, onde a possibilidade mesma do acesso a esta verdade depende, doravante, do próprio homem e não de dogmas divinos, como regia o teocentrismo medieval.

O método cartesiano toma a dúvida como ponto de partida: é preciso duvidar de qualquer coisa que não se possa reconhecer como evidente. Após duvidar de tudo que é possível duvidar, chega à constatação de que se há algo de que não pode duvidar é de que ele mesmo pensa. (Descartes, 1996 p. 255). Esse raciocínio o leva a elaborar o que ficou conhecido como o cogito cartesiano, fundamento de toda a racionalidade moderna: penso, logo sou.

Lacan em seu texto “Ciência e Verdade” recorre à definição aristotélica da causa para elaborar o que está em jogo na relação de cada um dos saberes (magia, na religião e na ciência) no vínculo da verdade com a causa[1]. E, a partir daí, vai poder situar a especificidade da psicanálise em situação de ex-centricidade em relação a esses outros campos.

Na ciência, o que ocorre é que, da verdade como causa, ela nada quer saber, centrando-se inteiramente na causa formal. As questões do saber e da verdade são reduzidas à questão do método, da formalização, e nada mais do lado do sujeito precisa ser questionado, como por exemplo, o desejo do cientista... Voltaremos a isso um pouco depois.

A ciência progride pela vontade de domínio sobre o real. Encontrar as respostas para tudo aquilo que se atravessa em nossa história como enigma, obstáculo, e no limite, para a própria morte. No entanto, esse progresso científico é balizado muito mais pelos novos obstáculos que cada teorização encontra, do que pelos próprios avanços obtidos. Essa é a tese de Koyré, filósofo como quem Lacan irá dialogar. (CABAS, 2003, p.200)

No entanto, o curioso do discurso científico é que, desses limites com os quais ele vai se deparando (e que constituem sua verdade), ele não quer saber nada. Ele foraclui a verdade como causa, assim como sutura o sujeito eliminando a questão do seu desejo. É assim que a ciência moderna nasce por um movimento que elimina as relações do sujeito com a verdade, por uma valorização do “como funciona”, em detrimento do “qual o agente” ou “qual a finalidade” de uma ação.

 É interessante observarmos que, ao mesmo tempo em que cria as condições para o surgimento do sujeito (antes do momento cartesiano, o único agente do universo era Deus), o nascimento da ciência moderna expulsa de suas condições de possibilidade exatamente tudo que diz respeito a esse sujeito. Isso porque, a partir daí, nada do “ser de sujeito” do cientista participa dessa produção do conhecimento. Pelo contrário, espera-se dele a máxima neutralidade.

Vários colegas têm respondido ao livro “Que bobagem!” numa linha argumentativa que advoga pela cientificidade da psicanálise. É essa posição que Pasternak & Orsi rebatem quando criticam a existência de uma “outra ciência”, uma ciência hermenêutica, mais voltada para a mente, para o espírito, que operaria por regras próprias (Pasternak & Orsi 2023, p.200). Não é a posição que penso podermos depreender da obra de Lacan e tampouco é a posição que depreendo da minha própria experiencia com a psicanálise.

A psicanálise opera com o saber e a verdade de modo diferente da ciência, embora também não assuma uma posição de negação da ciência. Podemos dizer que há pontos de aproximação entre esses dois campos do saber, mas também um determinado ponto em que eles se separam, justamente em relação ao lugar da verdade em relação ao saber e no que diz respeito ao ponto de onde se pode extrair uma garantia em relação ao saber. 

Pontos de aproximação, primeiro. A psicanálise, não é fruto de uma revelação, pois, assim como a ciência é produto de uma certa relação com a racionalidade. Sabemos como Freud sonhava com a possibilidade de instalar a psicanálise no Panteão da ciência. Lacan até determinado ponto também o acompanha nessa empreitada. O recurso a linguística, a lógica e a matemática vão no sentido de afastar a psicanálise de qualquer experiência de revelação e de fazer dela algo transmissível em termos científicos.

Na matemática o processo de formalização consiste na redução lógica a partir de uma operação que converte uma sentença ou argumento em uma forma sentencial composta de letras que, por sua vez, vão permitir realizar operações. No final de seu ensino, Lacan recorre mesmo a esse campo do saber como o único que poderia permitir um acesso ao real. “Uma falsa ciência, assim como uma verdadeira, pode ser posta em fórmulas”, diz Lacan no seminário 11. Mas aí também está o distanciamento da psicanálise em relação à ciência. O recurso a essas ferramentas não está dedicado a fazer a psicanálise caber na lógica científica, mas de levar essa lógica até seu último limite para fazer aparecer aí o que nela falha.

O que vai interessar a Lacan não é o que se formaliza das proposições em si, mas seus impasses, pois é justo por eles que o real pode vir a se escrever. É por isso que, apesar de recorrer largamente à formalização lógica, Lacan vai dizer que “O truque analítico não será matemático. É mesmo por isso que o discurso da análise se distingue do discurso científico” (Lacan, 1972, p. 159).

A razão desde Freud comporta uma dimensão que só vai poder ser acessada a partir daquilo que falha nessa racionalidade. De todo modo, essa “falha” também estava em jogo na origem da ciência, na dúvida cartesiana que divide o sujeito e na angústia que acomete Descartes nos pesadelos da agitada noite em San Martinho no ano de 1619; noite que precede “os fundamentos da ciência maravilhosa”. (Baillet apud (Borges-Duarte, 2003 p. 318). 

É esse sujeito dividido e angustiado que Lacan vai afirmar ser o sujeito da psicanálise, o mesmo sujeito da ciência. Antes da ciência moderna, não haveria possibilidade de surgimento da psicanálise pois a questão da “causa” era totalmente atribuída a Deus. Além disso, podemos dizer que a psicanálise nasce de um dos obstáculos encontrados pela ciência positivista: é Freud em seu encontro com as histéricas de Salpetriêre, essas que se constituíam em um limite para o saber científico, não respondiam a ele, não se encaixavam em suas premissas.

Assim, seguindo a tese de Koyré, seria a psicanálise uma ciência, já que nasce do encontro de um obstáculo de uma axiomática anterior? Poderia até ser, se não fosse o fato de que a psicanálise já nasce subvertendo a lógica do discurso científico. Ocorre que Freud, ao se questionar sobre a histeria, não o fez sob os moldes de um observador externo ao objeto estudado. O que a psicanálise sustenta é que o “sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto”. (Lacan, 1966/1998, p. 875).

Foi através da análise de seus próprios sonhos que Freud avançou no terreno da histeria. Isso porque ele, assim como Descartes, se perguntou sobre o que fundamenta a relação de um saber com a verdade. Isso porque dizer “Penso, logo sou” em termos de pensamento, não resolve absolutamente a questão acerca de “o que sou eu?”. Descartes respondeu recorrendo a Deus como sujeito suposto saber, aquele que não o deixaria enganar-se.  Já Freud, ao se perguntar sobre esse lugar da relação entre saber e verdade, respondeu: ela deve ser acessada numa relação com seu próprio inconsciente. Isso porque o que ele descobre é que o sintoma tem um sentido, uma lógica a ser decifrada: isso fala! É, portanto, no próprio texto inconsciente que se manifesta através dos lapsos, sonhos chistes, que a verdade do sujeito deve ser buscada. Ou seja, a psicanálise reintroduz no campo do saber a relação do sujeito com seu desejo, ou seja, com sua verdade.

Para a acessar a verdade é preciso que o próprio sujeito vá se interrogar sobre o seu desejo, ou seja, para a psicanálise, não se trata de uma verdade transcendente, absoluta, universal. Trata-se de uma verdade particular, um “fato de memória”: “lembrar os obstáculos que precederam a conquista de um saber – o que Lacan denomina ‘a verdade enquanto causa’- é o que o discurso analítico define como ‘lembrança da castração’. (CABAS, G. 2003, p. 212). É isso que a ciência não considera, a memória dos obstáculos, e que a psicanálise vai resgatar.

Não sem o ser do analista

É por isso que as provas da eficiência da psicanálise não poderiam, em última instância, ser buscada segundo a lógica da ciência moderna (por mais que até se possam realizar estudos comparando um ou outro de seus resultados segundo os moldes científicos).  A psicanálise não é uma terapia que visa a corrigir um transtorno ou eliminar um sintoma. Ela é o acesso absolutamente singular à relação que um sujeito estabelece com a verdade que o sustenta e com o saber furado de onde pode vir a orientar no mundo. 

Aqui chegamos ao segundo ponto que conseguimos extrair do texto de Pasternak para fazer avançar nossa discussão sobre a separação entre o campo da psicanálise e o da ciência é aquele em que ela aponta que, se a psicanálise traz benefícios, isso deriva mais da pessoa do terapeuta do que da técnica usada ou da teoria que embasa a técnica: “Em termos de saúde física, seria como se os antibióticos e as teorias dos germes só funcionassem bem se o médico tivesse características pessoais favoráveis”.(Pasternak & Orsi, 2023)

Apesar de mais uma vez demonstrar uma ignorância muito grande sobre o campo da clínica (desde seu surgimento a medicina esta advertida dos poderes da sugestão da pessoa do clínico sobre o paciente) aqui os autores têm um ponto. É verdade que em psicanálise a pessoa do terapeuta vai ser convocada, pelo menos na medida em que este compareça com sua angústia.

As acusações de que os autores fazem de que psicanalistas seriam vaidosos e abusariam do exercício de seu poder tem um nome em psicanálise. Trata-se do fenômeno da contratransferência, definida por Freud (1910) como a resposta que surge no médico quando o paciente influencia os seus sentimentos inconscientes. E que, desde sempre, é localizada por ele como algo a ser sobrepujado na experiência analítica, já que o tratamento deve, na medida do possível, ser executado na privação.  

Para Lacan (1960-1961/2010) a contratransferência é índice de que este que conduz a análise está se colocando aí como sujeito, pois o sujeito é aquele que experimenta os afetos. Mas, ao contrário do que possa supor o cientista, o antídoto para a contratransferência não é a neutralidade do método, mas sim, o desejo do analista. Se o analista pode, e deve, deixar de fora do tratamento sua sede de poder, sua vaidade, seus preconceitos, é porque cerniu o suficiente aquilo que causa seu ser de sujeito.

Então a psicanálise é o discurso que, ao invés de dizer “Que Bobagem!”, vai dizer: “venha, traga sua bobagem, venha falar dela aqui até você pode extrair daí a escrita de algo que possa vir a funcionar como garantia do seu ser”.

O que permitiria então que, na condução do tratamento, o analista se abstenha de tomar seu paciente como objeto é “desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a

saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela” (LACAN, 1960-61/2010, p. 233) . Por isso a indissociabilidade entre a análise do analista e sua aptidão para ocupar esse lugar. Mas, “O que há de ser do desejo do analista para que ele opere de maneira correta? Pode esta questão ser deixada fora dos limites de nosso campo, como o é de fato nas ciências- as ciências modernas do tipo mais garantido - em que ninguém se interroga sobre o que é, por exemplo, do desejo do físico?” (LACAN, 1964/2008, p. 17), se pergunta Lacan no Seminário 11 – Os conceitos Fundamentais da Psicanálise. É exatamente porque esse desejo que concerne ao analista não pode ser deixado de fora, como acontece com o físico, que a psicanálise não pode ser considerada uma ciência e, por extensão, não pode ser também uma pseudociência. Como disse minha irmã e pesquisadora da filosofia da psicanálise Léa Silveira, “a gente não pode chamar um alho de pseudobugalho”.

Para elaborar um pouco mais essa distinção entre o caminho da psicanálise que leva ao desejo do analista e o caminho da ciência que não se pergunta pelo desejo do físico, explorarei a seguir um pouco da vida e obra de Oppenheimer, recorrendo ao recém-lançado e sensacional filme de Christopher Nolan e ao livro que deu origem ao filme “Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano” de Kai Bird e Martin J. Sherwin.  

 

Em breve, no próximo post!



[1] Aristóteles, há mais de 300 anos a.c. definiu as quatro dimensões da causa:

1. a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata é feita;

2. a causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material, a forma da taça;

3. a causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça requerida é determinada segundo matéria e forma;

4. a causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada.

 

Referências

 

Borges-Duarte, Irene. 2003. O Melão, o Remoinho e o Tempo: Descartes e o Sonho de uma Noite de Outono. Revista Portuguesa de

CABAS, A. G. O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan: da questão do sujeito ao sujeito em questão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.  

Descartes, René. [1637] 1996. Discurso do Método. Descartes - Coleção Os Pensadores. São Paulo : Martins Fontes, [1637] 1996.

Foucault, Michel. 2006. A Hermenêutica do Sujeito. Curso dado no Collège de France, 1981-1982. São Paulo : Martins Fontes, 2006.

Freud, S. (2006). As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. Obras completas, ESB, v. XI. Imago: Rio de Janeiro. (Trabalho original publicado em 1910)

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário original de 1972-1973)   

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário original de 1960-1961)  

Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In J. Lacan, Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Originalmente publicado em 1966) 

LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (O Seminário, 11)

Pasternak, N.; Orsi, C. Que Bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023.



 

 

 

 

 

 

 

 

 


A Bobagem deles e a nossa


 

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

O Pop Não Poupa Ninguém


 

por Lia Silveira

 

A Psicanálise pode ser pop? Foi o intrigante título proposto pela curadoria do Simpósio Internacional de Psicanálise da UNIFOR, a quem agradeço em nome das professoras Sabrina Matos e Juçara Mapurunga pelo convite e pela oportunidade de pensar esse tema.

 

A primeira pergunta que a gente pode se fazer é “o que é mesmo ser pop?”. Numa rápida pesquisa que fiz descobri que o termo se refere a certo tipo de manifestação cultural, aquela também chamado “cultura de massa”, a ser distinguida da “cultura popular”. Enquanto a última caracteriza-se pelas manifestações artísticas de um povo (suas danças, festas, crenças, artesanatos, etc.) a cultura de massa ou cultura pop, é aquela industrializada, produzida e disseminada pela indústria cultural que, com intuito mercadológico, populariza músicas, roupas, produtos e pessoas. Podemos pensar assim: enquanto a cultura popular é a expressão do modo de ser desejante de um povo, a cultura pop modula o que esse povo deve desejar reduzindo a sua expressão ao consumo.

 

Esse modo de apropriação do desejo a partir da oferta de objetos de consumo foi definido por Jaques Lacan como sendo a base do que ele chamou de discurso capitalista. Um discurso, para Lacan, é um certo modo de ordenação do gozo, que articula através da linguagem os modos de relação entre o lugar do agente, do outro, da verdade e do produto. 

 

Como seres falantes, não contamos mais com o instinto para nos orientar. Resta-nos, portanto a linguagem, como único recurso para nos apalavrar diante da precariedade em que nos encontramos para lidar com as exigências da pulsão. Não existe um uma realidade pré-discursiva, ou seja, toda relação que estabelecemos com a realidade é mediada de algum modo por um discurso. No discurso do mestre, por exemplo, temos o ponto inaugural do sujeito, na inscrição de um significante sob o qual este assente em se fazer representar. Trata-se, portanto, de um processo de alienação em que o significante, que vem do outro, representa o sujeito para outro significante. Essa operação, por sua vez, deixa um resto, impossível de ser simbolizado, uma vez que a apalavra não consegue recobrir tudo da experiência.

Ocorre que no ponto em que nos encontramos na ordenação discursiva chegamos, pela via de uma torção nesse discurso do mestre, à produção daquilo que Lacan chamou de discurso capitalista.

A principal mudança que o discurso capitalista opera é a ausência de qualquer relação entre o agente e o outro, o que denuncia sua ineficácia para fazer laço social, para fazer o amor, por exemplo: “nesta montagem de discurso o sujeito ($) só se relaciona com a mercadoria de objetos (a) comandados pelo mestre (S1)” (SOLER, 2011) 

Dessa forma, o discurso capitalista vela o ponto de impossível que se coloca para todo ser falante, criando a ilusão da oferta de objetos de consumo que poderiam tamponar a sua falta estrutural. A satisfação que esses objetos produzem, no entanto, é bastante precária, o que faz com que o circuito se renove e novos objetos se tornem “indispensáveis”, exigindo a substituição veloz e imediata dos objetos de consumo, os gadgets, garantindo, assim, que a reprodução do discurso seja perpetuada (ALBERTI, 2000). 

Nesse curto-circuito de consumição as engrenagens não podem parar de girar, nem que seja às custas da combustão do próprio corpo, como mostra muito bem a síndrome de burnout, tão característica da nossa época. Nada é relevante se não puder ser transformado em mais-valia, não só as coisas em si, mas tudo aquilo que participa do horizonte da subjetividade do ser falante passa a ser interessante na medida em que possa ser comercializado. Como diz a frase da música do Engenheiros do Havaí: o pop não poupa ninguém.

 Se o pop não poupa ninguém, certamente não iria poupar também a psicanálise. Temos nos deparado nos últimos anos com a circulação frequente do significante “psicanálise” nas redes sociais, seja através de instituições que se propõem a formar psicanalistas, seja pelos próprios sujeitos que se autorizam analistas e produzem conteúdos às vezes (não todos) bastante afinados à estética desse universo. Mas será que a psicanálise pode se manter existindo dentro dessa estrutura? Examinemos alguns pontos:

1 - O pop é palatável e fácil de consumir como um big mac. A psicanálise não é algo fácil de digerir. Não porque ela precise ser hermética e inacessível. Mas porque à medida que nos aproximamos dela, algo em nossa própria angústia é chamado a comparecer. É certo que isso não acontece com todos. Há aqueles que se mostram indiferentes a esse encontro. Mas uma vez que se é tocado de algum modo por esse saber, seja por seu fascínio seja pela sua repulsa, algo desse indigesto objeto causa vai se apresentar.

2 - O pop é rápido, time is Money, é o lema do capitalismo. Mas uma psicanálise requer tempo. Como diz Freud, poderíamos até pensar que estamos diante de uma forma de magia, quando através de palavras, algo do sintoma se dissolve. Mas só se pudéssemos falar de uma magia lenta.

3 - O pop almeja atingir o maior público possível para alcançar cada vez mais visibilidade. As redes sociais estão aí a serviço disso. O maior número de likes possível. A psicanálise não é um discurso expansionista. Ela não é o que faz bruá-bruá, como diz Lacan. Ela não lota estádios como os coachs. Ela não visa criar “seguidores”. Ela também não é o intelectualismo, o elitismo. “A psicanálise não é pra qualquer um”, ouvimos as vezes com certo pedantismo. Mas não é de presunção que se trata. Realmente a psicanálise não é pra qualquer um, ela é, como diz a colega Zilda Machado, “A psicanálise é pra qual quer?” qual dentre tantos vai querer se deparar com a sua angústia e enveredar realmente por ela para chegar a sua verdadeira singularidade, aquela que dá sustentação a seu desejo?

4 - Ser pop é estar na moda... Mas a moda passa e gera o lixo, o resto. O motor do pop é a obsolescência programada que gera montanhas de lixo. Que lugar haveria para a psicanálise aí? A psicanálise é o discurso que recolhe esse lixo, o analista é um minerador de ocorrências involuntárias, diz Freud. Um apanhador de desperdícios, podemos dizer com Manoel de Barros. Ela lida com tudo aquilo que não tem valor de troca, apenas valor de gozo.

 Desses pontos podemos deduzir, então, que pode até haver (e há muitas) tentativas de apropriação da psicanálise por parte do discurso capitalista em fazer existir uma psicanálise pop, produto de consumo. Mas como Midas, ao tentar transformar o discurso psicanalítico em ouro, eles o condenam a não servir mais para nada. Resta muito pouco ou quase nada da operatividade da psicanálise nesses produtos ofertados em seu nome. E isso por uma questão de estrutura. 

 O discurso analítico é estruturalmente diferente do discurso capitalista (o que não quer dizer que a psicanálise possa sobreviver menos no modo de produção capitalista do que no socialismo). Mas é de outra lógica que se trata, uma lógica que, inclusive, fura a lógica do modo de produção capitalista.

Num texto chamado “Nota aos Italianos » Lacan diz que há um clamor próprio á humanidade, ela clama por alívio do seu sofrimento. Só que, nesse clamor há um « não querer saber nada » que lhe é ao mesmo tempo inerente. Não querer saber nada de que? Do furo que habita o próprio saber, que no coração de toda experiência do ser falante há um impossível de ser suprido com o saber. Enquanto a civilização e os discursos que a sustentam se fundam por ignorar esse fato de estrutura, o discurso analítico é o único que não somente reconhece esse furo, mas que faz dele mesmo um fundamento de sua experiência.

Ele é o único discurso que se interessa por aquilo que ninguém quer saber: a falha, o fracasso. Não por gosto pelo sofrimento, mas por saber que a única forma de tratamento possível da angústia passa justamente por incorporar de algum modo a falta que é efeito da linguagem sobre o corpo.

 Para finalizar, podemos passar então a questão da transmissão e da sobrevivência da psicanálise na era da internet e suas ferramentas, o Instagram, do Tweeter, do Tik Tok e do ChatGpt. A psicanálise pode se apropriar de alguma maneira dessas tecnologias para continuar se transmitindo? Será que ela tem chance de sobreviver na era cibernética?

 Para Lacan, a chance de a psicanálise sobreviver é que alguma coisa nisso tudo continue fracassando. E para isso, nós, como analistas não precisamos fazer nada. Não é do analista que depende o futuro daquilo que fracassa sempre, mas o que depende dele, sim, é a resposta que dará diante do retorno disso que fracassa e que insiste sob a forma de angústia. 

Em 1974 quando Lacan dava uma entrevista para uma revista italiana, o auge do que ameaçava a civilização era a televisão. Sugiro que leiamos esse trecho da entrevista substituindo “televisão” por “internet”:

 

“É verdade, existem à nossa volta coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas veem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que devoram. Mas não há por que se fazer um drama disso (...) É uma revivescência da religião, não é?  E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado. Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal.  O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau” (LACAN, 1974).

 

A nossa aposta, portanto, é que enquanto houver linguagem, haverá furo no saber e havendo furo, haverá quem se angustie. E quando há angústia, há chance de que alguém queira saber algo do seu desejo. O futuro da psicanálise, portanto, não está em saber se vamos usar ou não as ferramentas “pop” para fazer sua transmissão. Mas que haja sempre alguns que, em atravessando sua própria experiência com a angústia e com o desejo, possam, sem ceder do seu desejo,  sustentar aberto o furo por onde se poderá fazer chegar a outros o contágio da peste.      

 

Referências

 

ALBERTI, S. (2000) O discurso do capitalista e o mal estar na cultura. Acesso em 30.Out.2016.

 

LACAN, J. (1974) Entrevista à Revista Panorama. Acesso em 03.Ago.2023.

 

SOLER, C. O discurso capitalista. Stylus Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 22, p. 55-68, 2011.


 

segunda-feira, 28 de março de 2022

A passagem ao ato Hollywoodiana


 A violência não é justificável em (quase) nenhuma circunstância. Quando o homem proferiu um insulto ao invés de jogar uma pedra, fundou a civilização, já disse Freud.

Mas não é mais escândalo nenhum afirmar a precarização em que o discurso capitalista lança esses laços, reduzindo a palavra ao cinismo e o corpo a só mais um objeto de consumo.


Hollywood, queiram ou não seus agentes, é uma das peças dessa engrenagem. Nos últimos anos foi se revelando a misoginia e o racismo que grassam atrás das câmeras e que revela-se também nas premiações do Oscar, etc. 


Assustados com o que viram, os organizadores trataram de enfrentar o problema pela via identitária- o que há algum tempo já se reflete na premiação do Oscar. 


A cerimônia de ontem seguia a risca o figurino: negros, mulheres, latinos, LGBTs, todos representados nas obras indicadas, na organização do evento e na plateia. Que bom, poderíamos dizer! Hollywood está mudando. 


Mas logo na abertura uma coisa chama a atenção. Como num filme de David Linch, tem algo muito estranho quando a lente se aproxima. Amy Schumer, Wonda Sykes e Regina Hall fazem a fala inicial. As duas apresentadoras negras, dizem que estão ali representando as mulheres negras no cinema. A outra, branca, responde: “e eu estou aqui representando as brancas que ligam pra polícia quando vocês estão falando alto demais”. A plateia ri. Em seguida, elas se dirigem a um homem branco de meia idade sentado na plateia dizendo: você viu o fulano? Está acabado ele, né ? Ao que a outra responde algo como: “eu ainda pegava”.


E segue o show de horrores com acusações de incesto aos irmãos Gyllenhall, de promiscuidade a Di Caprio e outras piadas de péssimo gosto ao longo de toda a cerimônia, tudo bem recheado de auto e hetero agressividade. 


Até o momento em que Chris Rock faz mais uma dessas piadas terríveis , dessa vez sobre a falta de cabelos da de mulher de Will Smith, que levantou foi até o palco e esbofeteou o apresentador. 

A essa altura, como tem sido frequente no contexto atual, ninguém sabia mais o que era piada e o que era realidade. Infelizmente parece que não foi cena. 


Lamentável a atitude, mas 

não acho que Will seja um imbecil ou uma vítima do machismo. Ele só atuou o que a cerimônia estava a todo todo tempo pedindo. 


A lógica, apesar de montada em enunciados de inclusão, está sustentada numa enunciação que é a do ódio ao gozo (imaginado como do Outro, sem saber que é do próprio corpo que se trata).

Não podia dar mesmo noutra coisa. 


Provavelmente nem mesmo Will sabe porque agiu assim, mas, sem ter lugar para localizar a falta, o que emerge é o mais-de-gozar em sua face odiosa e que, na falta de recursos simbólicos, passa ao ato. 


Will Smith interpretou Hollywood … ainda bem que foi só um tapa. Podia ter sido bem pior.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Está oficialmente decretado o fim do mundo


Todo mundo já sabia, o mundo acabou faz tempo. Nos últimos anos acabaram-se várias conquistas democráticas, acabou-se o prazer ingênuo de tomar um chopp na calçada, de encontrar os amigos sem culpa. Acabou-se o dinheiro de papel, a comida no restaurante, as aulas presenciais. Acabou-se a mídia impressa, o jornal das oito, a campanha política com santinho. 
 
Nem todas essas coisas vão fazer falta, algumas já vão tarde, na verdade. Mas hoje, a morte de Elza Soares materializou simbolicamente esse sentimento de luto.  Ela que disse que ia cantar até o fim, se calou. E o fim do mundo chegou. “It's the end of the world as we know it”… como diz outra canção.

Mas Elza também foi a mulher que enfrentou a pobreza, a discriminação, a violência e.. renasceu, recriou-se. Como uma espécie de Benjamin Button, rejuvenesceu a medida que os anos se passavam. Incorporou o rap ao samba e nos surpreendeu com uma música fresca, jovem e ao mesmo tempo, com um tempero de maturidade. Quando gravou o álbum “A Mulher do fim do mundo” obviamente já sabia que o fim estava próximo.. mas era tanta força , tanto desejo, que ela esticou ainda uns anos. E no dia do show homônimo ela tava lá, sentada numa cadeira de rainha. Um corpo já quase morto, não ficava mais de pé. Mas quando abriu a boca se via que ele era habitado por um sujeito cheio de desejo, insistindo em viver. E ela botou pra fuder! Aquela voz parecia saindo do centro da terra como um vulcão. Muita emoção…
 
Beleza, mana. Fica com Deus!.. a gente que continua fica com a responsa de inventar outro mundo e nele vai ter uma pedrinha do que você nos deixou.

Lia Silveira

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

80 anos da morte de Freud







A história é repleta de grandes nomes que contribuíram para o progresso da civilização: conquistadores, inventores, filósofos, políticos, artistas, cada um transformando de sua maneira a aventura humana na terra.
Mas, se todos esses contribuíram para o progresso, apenas um deles deixou como legado uma invenção capaz de desvendar ao homem o seu avesso, a “outra cena” que o verniz civilizatório insiste em não querer saber, mas que retorna como o mais íntimo de cada um.
Sigmund Freud legou-nos a psicanálise, e com ela uma possibilidade de tratamento do mal-estar correlativo a existência em civilização. Em meio ao assombroso avanço científico do final do século XIX, ousou falar daquilo que resistia, e ainda resiste, a ser processado no maquinário do progresso. Correu o risco de falar e escutar aquilo que se atravessa no meio do caminho impedindo que a raça humana avance desenfreada rumo a um futuro distópico alimentado pelo sonho de imortalidade. Mais ainda, arriscou-se a sustentar um discurso para o qual a consciência da transitoriedade é, na verdade, aquilo que faz com que a vida valha a pena ser vivida com entusiasmo. Pois se tudo perece, tudo acaba, é por isso mesmo que se torna mais raro e singular a experiência. Ele ousou falar de limite, de fim e de castração para um mundo que quer cada vez menos saber de tudo isso. Freud não chegou a conhecer o capitalismo globalizado atual, mas o que ele produziu nunca foi tão necessário.
Até aqui, não me refiro ao homem Freud que, vira e mexe, volta às capas de revista acusado disso e daquilo. Refiro-me ao discurso que ele fez germinar de sua própria experiência e que se dissemina até hoje pelo contágio da peste. Acho que isso ultrapassa sua biografia e faz de seu nome uma marca que funciona como divisor na história da humanidade.
Mas hoje, 23 de setembro de 2019, data que marca 80 anos de sua morte, quero deixar expresso meu agradecimento por ele ter existido e por ter sustentado seu desejo, pois, sem isso, não teria havido a psicanálise. Meu agradecimento, também, por por ela ter persistido viva ao longo desses anos todos, contagiando tantos outros analistas. E por, nessa cadeia de homens e mulheres que ousaram querer saber do seu desejo, ter chegado com sua lâmina cortante até mim, e me dado a oportunidade de de-siderare, romper com a sideração do destino que estava escrito. Por fim, por poder sustentar essa experiência para os que hoje procuram também querer saber e reescrever suas histórias. Por tudo isso, muito obrigada, Freud!
Lia Silveira

quinta-feira, 23 de maio de 2019

O prêmio Camões é nosso

Não resisti .. depois que a amiga Eliany Nazaré me marcou no post de Pedro Tadeu “Chico Buarque lhe ensinou o que?” resolvi escrever a minha versão:

- Quando eu tinha 05 anos não entendia nada do que a música dizia, mas aprendi a dançar loucamente com a Irma Léa Silveira ouvindo “Tanto Mar “, correndo e rodopiando no salão de casa. Detalhe, a gente cantava “manda novamente algum cheirinho de alegrim”. Então eu achava que a música era sobre uma coisa alegre demais ..não fazia ideia que vivia uma ditadura e Portugal tava acabando de fazer a sua revolução dos cravos. Chico me ensinou a minha lalangue.

- quando eu tinha entre seis e sete anos, ouvindo “pedaço de mim”, ficava realmente impressionada com a história do revés do parto e de arrumar o quarto do filho que já morreu. Chico me ensinou a nomear angústia.

- os anos seguintes, entre os 9 e os 12 foram regados à muito “Cálice” e seu pileque homérico no mundo. Não sei muito bem o que eu entendia da música, mas fazia muito sentido. Chico me ensinou sobre o apelo e o desamparo.

- dos 12 aos 20 e poucos anos, Chico não tava lá. Mas tudo bem. Eu também não. Quando voltamos, ele me ensinou sobre viver, sobre reconstruir, com muito “injuriado” e “deixa a menina sambar em paz”. Ali, ainda bolsista na era FHC, eu comecei a ir em todas as suas turnês, catando moeda pra poder pagar o show, mas não perdia um. Ainda bem que não eram muitos, se não Chico ia ter que me ensinar a pagar empréstimo.

- depois ele me ensinou a amar de novo, advertida dessa vez com um “sob medida”, mas ainda bem encantada com “todo sentimento”.

-aí eu fui apreendendo cada vez mais com Chico, me encantando com a astúcia de “Feijoada completa” , me emocionado com a vida do “Pedro Pedreiro” esperando um filho pra esperar também. Experimentando o amor de “Suburbano Coração”, sambando com a “Rita”.

-em 2012 ele entrou no palco cantando “pensou que eu não vinha mais, pensou”. Eu acreditava que era pra mim. nesse dia Chico me ensinou o que era a erotomania... só por alguns segundos. 

-Em 2015 fiz parte de um cartel sobre o feminino nas letras de Chico Buarque. Cada membro escolhia uma música para estudar a partir da psicanálise. Lá aprendi com “uma canção desnaturada” que o feminino pode ser sem devastação e aprendi também com a colega Lina Cavalcante sobre a beleza de descobrir que “com açúcar, com afeto” é só um retrato. Mais recentemente ele me ensinou mais ainda sobre o feminino numa apresentação de jornada de cartéis com o trabalho cantado de Raissa Dantas sobre “palavra de mulher”. Chico me ensinou psicanálise.

- E não poderia deixar de contabilizar aqui o aprendizado político em que, mesmo quando eu duvidei de onde deveria estar, fiz minha escolha e, quando olhei pro lado, Chico sempre estava lá. Sempre coerente, nunca silenciando quando se faz necessário falar.

Então, nessa página infeliz da nossa história que vivenciamos esses dias, o prêmio Camões foi um bálsamo e, assim como o colega do belíssimo texto que circulou esses dias , também posso dizer : eu ganhei !