domingo, 12 de agosto de 2012

Arnaldo Baptista: a vida em golfadas

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A vida nem sempre entra suave. Algumas vezes vem em golfadas, jorros engolidos, vomitados. Com as palavras tentamos costurar algo que minimamente filtre e desacelere essas invasões. Mas sempre escapa muito ou pouco desse impossível que, por sua vez,  se diz no corpo. Angústia ou despedaçamento, se diz no corpo. Acabo de assistir Loki (2008) documentário sobre a vida e obra do músico Arnaldo Baptista. Sempre gostei de Mutantes, mas confesso que nunca soube muito da história desse integrante da banda. Pra mim ele era só mais um dos Mutantes que um dia desapareceram, ficando a Rita Lee.  Mas o que me fez querer escrever não foi o artista. Muito rico, de uma criação profícua, diga-se de passagem. O que me envolveu no documentário foi a odisseia de um sujeito em busca de um lugar para poder existir.

Uns garotos de 17 ou 18 anos, vivem uma ascensão intensa nos loucos anos 60. Fazendo um som que muitos nem entendiam, misturando rock, bossa nova e muito improviso. Um sucesso estupendo, no Brasil da ditadura e fora dele. Um dia seriam comparados aos Beatles e admirado por gente do nível musical de Kurt Cobain e Sean Lenon. Assim como os garotos de Liverpool eles também conhecem os poderes do LSD. Muitos voltaram da viagem, Arnaldo não. 

Fim da banda, fim do casamento com a mulher que lhe dava alguma estrutura. Rita era para Arnaldo o que Nora era para Joyce, o que Gala era para Dali. A mulher, que por algum tempo funcionou como amarração. Mas quando ela começa a querer, a desejar, isso se torna incompreensível para ele: “É difícil falar alguma coisa que seja compreensível para as pessoas que tenham algum sentimento pela Rita Lee, mas as pessoas a veem pelo lado do palco, dos holofotes e eu a via pelo lado LetItBed[1]. Então, nesse sentido, teve uma certa razão de ser do lado dela ter me abandonado. Mas acho que foi tudo uma questão de cansaço.  E tudo isso depende de um gosto, e eu tinha um gosto que eu num conseguia expressar pra ela né? Talvez por falta de experiência, porque ela era a minha primeira, então não tinha muito relacionamento com outros seres femininos, né? Então pra mim era um pouco misterioso o que eu conhecia de mulher, não tinha irmãs.. Então foi a mamãe e num passou disso. Depois foi a Rita Lee e com as coisas que vieram.”
O mistério da mulher (que não é a mãe) se abre e abre de forma hemorrágica a invasão da vida. O mundo vinha em golfadas, mas não dessa forma filtrada que a linguagem permite. Nas palavras dele mesmo: “eu me sinto completamente esburacado. É como se pessoas tivessem dançando e passando por todos os meus poros”. Sem a rede de proteção simbólica o mundo é pura invasão, e o corpo é carne viva.
Internado diversas vezes e rotulado pela mídia como louco, o artista foi relegado ao ostracismo absoluto. Em mais uma de suas crises, ele é levado pela quinta vez ao hospital psiquiátrico. Durante uma tentativa de contê-lo em uma camisa de força, cansado de falar com os médicos, se sentindo perdido na vida e Arnaldo pensa: “Eu vou me ver livre! Escapa e se joga do quarto andar de uma das janelas do hospital.
Os danos cerebrais foram graves e ele entrou em coma. Ninguém esperava por uma possibilidade de recuperação. Na verdade todos se afastaram. Todos, menos uma mulher, uma fã, que passou a visita-lo todos os dias na UTI e nunca mais foi embora. Mais uma vez, uma mulher. Sem reducionismos maniqueístas entre aquela que o abandonou e aquela que o salvou. Não há aqui uma bruxa e uma santa. A primeira achou que não dava mais e seguiu seu caminho. A segunda renunciou a ser mulher e fez do ato de cuidar desse homem em coma, a sua sina. Como ela mesmo afirma, envolvida em um amor que vai muito além daquele entre um homem e uma mulher, um amor de mãe, ela diz.  Para algumas mulheres essa é uma saída viável: fazer de um homem o seu sentido. Seja como for, os cuidados dessa mulher foram fundamentais para permitir a construção de uma nova vida. Ela não só o admirou, o amou e o incentivou a criar, como deu a ele o mínimo de um laço social exigido para que ele não caísse no perverso esquema de seguidas re-internações psiquiátricas.     
Em certo ponto do documentário ele fala desse insuportável de um mundo construído na equivocidade significante, onde você fala "x" e as pessoas entendem "y", e sonha com um mundo onde "x" só queira dizer "x" mesmo. Mal sabe ele que a riqueza de sua obra reside na possibilidade mesma de que “x” possa significar um alfabeto inteiro. É isso que dói, é isso que cria.
Me parece que um dia ele conseguiu minimamente fixar esse “x” da questão e construir uma amarração que lhe permite existir sem tanta invasão. Parte disso, cabe a Lucinha, a sua menina como ele chama; A mulher, com A maiúsculo. A outra parte parece vir de um uso singular que ele mesmo fez do significante Loki/Louco. Se no auge da sua agonia ele cantava:
Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?
Sou malandro velho
Não tenho nada com isso”
Hoje ele soube no palco e canta a balada do louco, assumindo esse lugar reservado a ele pelo Outro social, mas fazendo disso o seu elogio a loucura:
“Dizem que sou louco, por eu ser assim
Mas louco é quem me diz, que não é feliz. Eu sou feliz.”
Não acredito muito nessa felicidade inerente à loucura que a poesia desse outro Maluco Beleza exalta. Mas desse lugar de louco ele encontra algum reconhecimento e consegue encontrar um lugar onde existir é possível. Não na loucura medicalizada da psiquiatria, mas na loucura que desde os tempos mais remotos fala pela boca de poetas, sábios e filósofos. De lá ele pode produzir sua obra. A nós fica a felicidade de ouvi-lo.


[1] Nome de um dos discos de Arnaldo Baptista que, segundo ele, já existia 14 anos antes mesmo do disco ser gravado. Aqui aparece como um neologismo para descrever sua relação com Rita.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Amigos

Um dia uma amiga me falou sobre a importância de cultivar várias amizades. Talvez ela nem saiba, mas aprendi muito com ela naquela ocasião. Não que eu ja não soubesse o valor da amizade.  Mas não me dava conta dessa espécie de balé, onde os investimentos se distribuem, deslizam, se encontram e se afastam ao sabor da música que cada um pode tocar. Então ela me disse: com alguns você vai ter vontade de compartilhar coisas íntimas, com outros você vai querer rir de bobagens, com outros falar sobre o trabalho e alguns você vai querer por perto quando estiver sofrendo. 
Ela falou e eu pude ouvir. Isso foi muito importante por que antes, eu esperava que cada amizade fosse capaz de suprir tudo isso, que cada amigo fosse um pacote com todas essas "funcionalidades" e passava a só investir naquelas que eu imaginava poderem suprir essas expectativas.

O problema é que esperar que uma só pessoa corresponda a tudo isso, não só é quase impossível, como corre o risco de levar essa relação a uma morte por asfixia. Aliás, isso vale tanto pro amor, quanto para a amizade. Freud inclusive aponta para uma raiz comum a esses dois sentimentos. A amizade, assim como o amor, surge do investimento de pulsões sexuais sobre o objeto. Só que no caso da amizade o impulso sexual é inibido, impedido por resistências internas de ser alcançado. Nesse caso, diz Freud, ele passa a se contentar com certas "aproximações" á satisfação. Acho que era disso que a minha amiga estava falando. Ao invés de perseguir o objeto ideal (que na verdade não existe), aprender a dançar com a pulsão, usufruindo de todas as "aproximações" possíveis. O mais legal é que, segundo Freud, esse é o tipo de investimento que leva ás relações mais duradouras, "especialmente firmes e permamentes". 

Hoje consigo perceber e cultivar os movimentos singulares de cada amizade:

Tem aquelas de um tempo muito distante, que quase não encontramos mais. Talvez elas nem existam na atualidade da mesma forma como habitam nossas lembranças. Mas isso as fazem mais especiais, pois permanecem conservadas nas memórias com muito carinho. 

Tem aquelas com quem convivemos muito no momento. A gente se fala com muita frequencia, compartilha coisas mais íntimas, liga quando está triste e quando tem uma notícia feliz.

Tem aquelas que são amigas de sangue, nasceram na sua familia, mas para além do laço sanguíneo, tem um grande sentimento de amizade que nos une.

Tem os amigos de farra (Adoro!). Quando chega sexta feira a primeira coisa que voce pensa é em reunir todo mundo, jogar conversa fora, dar uma boas risadas.

Tem os colegas de trabalho que viraram amigos. Em meio ao ambiente ás vezes árido de trabalho, das relaçoes de poder, de disputas e hierarquias, germina uma flor. E de repente você percebe que quer ter aquela pessoa na sua vida, muito além daqueles mestros quadrados. 

Tem os amigos dos amigos que viram seus amigos tambem. E amigos dos irmãos, amigos dos filhos, etc. Essa espécie é muito querida, é como se fosse amigo ao quadrado, pois alem de gostar de voce gosta tambem do seu amigo.

E last, but not least, tem os amigos recentes. Novas flores que ainda não desabrocharam, mas por isso mesmo cheias de descobertas. Todo um mundo novo que se anuncia. Alguns você conhece pouco, nem teve tantas oportunidades quanto gostaria de estar com eles, mas nutre uma espécie de carinho em reserva, so esperando uma chance de estreitar esses laços.


Enfim, a lista poderia crescer ainda mais a medida que vou lembrando de pessoas. Mas o importante é saber que cada uma dessas delas tem um significado unico, qualidades unicas, defeitos unicos e que com cada uma delas voce pode sempre aprender. 

Não vou dizer nomes pra não correr o risco de deixar ninguém de fora, mas obrigada a você que se reconheceu nessas palavras. Se isso aconteceu é porque você é muito especial pra mim. Obrigada especialmente a minha amiga do inicio do texto. Sem você eu talvez demorasse mais pra descobrir tudo isso.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Teresa e a Praia



Rio de janeiro, patrimônio da humanidade, eleito por suas belezas estonteantes. Já haviam me falado, mas ainda não tinha tido a chance de experimentar os efeitos que aquelas imagens provocam sobre a retina de quem vê. A situação em que me encontro é, no mínimo, inquietante. Estou por lá a trabalho e, diga-se de passagem, um trabalho como nenhum outro. Trabalho em sua dimensão de produção, mas também trabalho do inconsciente. Intenso. No fim do dia a saída do local onde estou dá acesso privilegiado à praia de Copacabana. Posto seis da princesinha do mar. Não tive tempo de ver muita coisa, assim mesmo de roupa de trabalho fui até a praia e fiz uma foto (pelo menos mostrar que estive lá!). Em conversa com um amigo digo:
- aquele mar lindo ali fora e eu trabalhando. Mas fazer o que, se eu gosto!
- Do mar ou do trabalho? Pergunta ele.
- Dos dois, respondo. E penso comigo mesma: feliz do pescador que trabalha no mar!
Mas, moto-contínuo, lembro de Caimy, com sua voz lânguida, a falar das vicissitudes do pescador, aquele que tem dois amor. O pescador deseja, e no seu desejo se divide entre dois bens. Será que se angustia quando, em alto mar, pensa nas firmezas que o bem da terra poderia lhe trazer? Suspeito que, quando muito tempo aportado, acorda sobressaltado no meio da noite com sonhos de sereias, areias, alheias, do bem do mar. Desígnios insondáveis que atingem todo aquele que precisa recorrer á palavra para se dizer.
Li em algum lugar que a indecisão não é quando se duvida do que se quer. Ao contrário, eh quando se tem certeza do que se quer, mas pensa-se que deveria querer outra coisa. É uma forma bem humorada de colocar a questão, mas acho que insatisfatória. Porque o desejo não é a indecisão entre o que se quer e o que não se quer. O que não se quer não se cogita. Nem entra na história. O desejo é o paradoxo entre aquilo que se quer e aquilo que se quer, as duas causas em questão confrontando-se mutuamente. Duas faces de uma moeda condenada a ser apenas metade. Não existe a opção de juntar as duas parte e formar o um. Meia moeda, é o que lhe cabe, e é melhor saber fazer alguma coisa com ela.
Dias depois, ainda nas minhas andanças pelo Rio, conheci Santa Teresa e confesso que ela me encantou ainda mais. A princípio acredita-se estar apenas em mais um bairro. Não é preciso sair da cidade, dobra-se uma esquina e chega-se a Santa Teresa. Ali se trabalha, se mora, se vive, como em qualquer outro lugar. Mas essa simplicidade é enganadora. É todo um outro mundo que se revela a cada curva: a arte, o movimento de contracultura, a rebeldia, a criação, vão transpirando por seus paralelepípedos. O clima começa mudar com cara de montanha. Pequenos recantos escondem cheiros saborosos.
Ao contrário da beleza escandalosa de Copacabana, Santa Teresa é discreta e não se despe de um só golpe. Vai se insinuando ladeira acima, com curvas malemolentes, escondendo segredos atrás de portas entreabertas. Teresa, como toda mulher, não tem nada de santa. Sabe que a beleza vela e aponta para o indizível e, assim, precisa usar de disfarces.
A medida que vamos subindo, somos completamente tomados por seu feitiço até que, no topo de um castelo em ruínas o improvável acontece: abre-se, numa vista panorâmica, aquele cartão postal: praia, corcovado, cristo e tudo mais ali...aos nossos pés. Teresa agora é da praia, não é de ninguém, mas encena uma fantasia que nos faz acreditar sermos os amantes que sobre ela deitam seus olhos. 
Volto de lá com a impressão de que posso aprender algo com ela, algo sobre os "paradoxos do desejo"!

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Quanto tempo leva assumir um desejo?


O mundo é feito de um jeito que nos leva a acreditar numa espécie de geração espontânea do desejo, como se desejar fosse o equivalente psíquico da respiração. Penso, logo sei o que desejo, o “em busca do quê corro”. Da mesma forma, sei exatamente o que não quero, o que me incomoda, o “pra longe de quê fujo”.
O “em busca de quê corro” está em tudo que se constrói e defende-se com unhas e dentes. Como geralmente coloca-se muito suor nessa empreitada, passa-se a defender a isso como a si mesmo. Tanto que se torna praticamente impossível viver sem isso. Corre-se por tanto tempo nessa direção que às vezes nem se sabe mais por que. Corre-se pelo gosto da corrida. E afinal, se parássemos de correr, iríamos fazer o quê mesmo?  Corremos, portanto. Só para não ter que se deparar com o risível vazio dos que não tem pra onde ir.
Já o “pra longe de que fujo” é tão antigo quanto seu oponente. Cedo na vida descobre-se que há motivo pra temer... só se esquece o “quê”. Enfim, não se trata de um caso de “mal” metafísico genericamente apreendido. Trata-se “daquele” inimigo íntimo com o qual dorme-se e acorda-se todos os dias. Mudam as configurações, as pessoas, os adereços, mas é sempre a sua cara sinistra em todas elas. Engraçado que mesmo em meio a toda essa intimidade , nem sequer se desconfia de que ele talvez tenha mais afinidade consigo que “aquilo em busca do que corro”, afinal de contas, enquanto este último precisa ser buscado, perseguido, o mesmo não acontece com o primeiro. Chega sem ser convidado, não faz  a mínima cerimônia e se instala como se a casa fosse sua.. e não é? Não! Grita-se com a força que restou do esforço que se fez correndo. Eu não sou isso! Eu não quero isso! Sem falar que o “isso” e questão é o exato avesso do que se acredita ser e, portanto, coloca em xeque tudo que diz respeito à segurança do hábito humeano. Talvez resida aí a explicação para o fato dele ser o fiel companheiro ignorado de um Dom Quixote às avessas que insiste em não atribuir realidade às suas sombras.
Um dia descobre-se (e nada é garantia de que esse dia chegue) que, por trás de todas as cortinas erigidas para dar ao mundo essa sensação de ordem, aquilo “em busca de quê corro” e aquilo “pra longe de quê fujo” não pertencem à planos distintos. Pelo contrário, são antes as duas pontas do mesmo laço de fita e, no meio, você. Isso sem falar que as duas pontas da fita se encontram e então quando você corre demais atrás do que quer acaba encontrando o que não quer e vice-versa.   
A primeira reação pode ser tentar livrar-se disso. Ok, posso até reconhecer que “aquilo de quê fujo” faz mesmo parte de mim, não sou tão amável quanto pensava..tudo bem. Mas tratemos de fazer uma bela faxina e cortar “o mal pela raiz” como se diz por aí.  O problema, meu amigo, é que em se cortando uma das pontas, desfaz-se o laço, e aí não sobra muito espaço pra chamar de seu. Nesse ponto (se chegou até aí) você é obrigado, enfim, a reconhecer: é meu desejo! Eu sempre desejei isso “pra longe de que fujo”. É realmente incrível o poder libertador disso. Ao nomear e subjetivar o inimigo, ele perde seus poderes demoníacos. Ele é só humano, demasiadamente humano e próximo.
É estranho que se leve tanto tempo só para poder assumir o que se deseja. Só que esse ainda não é o fim da jornada. A questão que se coloca é (como ouvi esses dias da boca de uma lady que, certamente, fez a travessia): sabendo de tudo isso, você ainda quer o que você deseja?