domingo, 22 de março de 2015

Os Labirintos da Falta e as Tramas por Onde Advém o Sujeito

 A pergunta sobre a origem não é nova na história da humanidade. Provavelmente, desde que há pensamento, há ali também a pergunta sobre a origem. De Gaia e Urano, passando por Adão e Eva até as teorias evolucionistas de hoje, todo um saber foi sendo elaborado para tentar dar conta do que constitui aquilo que é. O ser, a substância e o que o causa tem sido temas caros também à filosofia.

A psicanálise também vai se interessar por esta pergunta, não no sentido de uma metafísica, mas na medida em que Freud assume que não há, desde o início de cada vida que vem ao mundo, algo que responda como um sujeito. Para tanto, faz-se necessário todo um movimento, mas esse movimento que gira em torno da função estruturante da falta. Daí que Lacan vai afirmar que, nada na experiência psicanalítica, pode ser elaborado se não considerarmos a função da falta.

A elaboração da falta na experiência psicanalítica
Teoricamente, podemos tomar essa elaboração sobre a falta na constituição do sujeito por das vertentes: a vertente da falta de objeto e a vertente da falta fálica.

Em Freud, temos na experiência primordial de satisfação algo que poderíamos considerar o momento mítico de constituição do sujeito. A sensação de fome que inerva a parede do estômago faz com que o bebê emita um grito, grito este que vai ser tomado pelo outro, nebemensch, como um apelo. Esse outro comparece então com o seio que vai proporcionar a primeira experiência de satisfação. Dessa experiência, resta um traço que vai se inscrever e que vai ser “ativado” da próxima vez que a fome se apresentar. O outro lado da moeda dessa experiência é que, concomitante à inscrição do traço como afirmação (bejahung) temos a expulsão (austossung) de algo que vai ser rejeitado como estranho. O complexo do nebemensch se divide agora “em dois componentes, dos quais um produz uma impressão por sua estrutura constante e permanece unido como uma coisa, enquanto o outro pode ser compreendido por meio da atividade de memória – isto é, pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo [do sujeito].”(Freud, projeto, p. 448)

Temos então a situação em que agora, o bebê não mais espera a intervenção do Outro, mas busca satisfazer-se investindo esse traço mnêmico, ou seja, alucinando. No entanto, o objeto alucinado que o bebê investe não se sustenta como experiência de satisfação já que não existe na realidade. Mais uma vez ele chora, mais uma vez o outro comparece com o seio. Só que agora já se instalou aí uma diferença abissal entre o que ficou registrado como traço e o que se encontra na realidade como objeto, sempre insatisfatório, sempre deixando “a desejar”.

A outra via pela qual podemos resgatar a função da falta na psicanálise é aquela que se apresenta em torno da dialética do falo. Seguindo uma via diferente daquela apontadas pelos pós-freudianos (que propunham a existência de um objeto genital maduro) Lacan vai retomar as elaborações freudianas acerca da primazia do falo e suas consequências para apontar que o que está em jogo aí é, na verdade, a falta de objeto.

A relação mãe – filho já se coloca desde o início como triádica, tendo em visto que o falo já se coloca ai como terceiro elemento. Na subjetividade da mãe, o filho que vem ao mundo é tomado como substituto fálico e, pelo menos parcialmente, ocupa no desejo da mãe esse lugar. Temos então a situação em que o bebê é tomado no “engodo cooptativo” que o faz identificar-se ao falo imaginário materno. No entanto, como diz Lacan, a noção de falicismo implica por si mesma o desprendimento da categoria de imaginário, pois é por uma espécie de reviramento que ele passa a ocupar o seu lugar na dialética subjetiva, não enquanto órgão real, mas enquanto significante.
Isso porque o de que se trata aqui não é do órgão real, mas do falo da mãe, aquele que só é descoberto enquanto faltando em seu lugar, no lugar em que era esperado, e essa é a própria definição de significante já que ele não é outra coisa senão “o símbolo de uma ausência”. (Lacan, Seminário sobre a carta roubada , p.27)

É assim que, por um movimento que se inicia com as presenças-ausências da mãe, a criança vai se dando conta de sua incompletude. Vimos que o movimento do desejo vai ser o de tentar reencontrar o objeto perdido. Mas essa tentativa só pode se dar através da única via possível, aquela da demanda. A demanda implica em colocar aquilo que se apresenta como necessidade nas trilhas do significante, dirigindo-as ao outro. (Figura 01)
Figura 01

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Estamos no domínio da reivindicação, onde espera-se que o Outro possa responder. Mas, no horizonte, o que se espera que o Outro responda é, não pelo objeto da demanda, mas pelo objeto do desejo, aquele perdido e que se busca reencontrar. O desejo é exatamente aquilo que surge nessa “margem onde a demanda se rasga da necessidade”(Lacan, subversão, p. 828)
Figura 02


O desejo é exatamente aquilo que surge nessa “margem onde a demanda se rasga da necessidade” (Lacan, subversão, p. 828)

A frustração, é, para Lacan, a versagung, quebra da promessa, onde o Outro não responde. Não responde, claro, porque do desejo ele também nada sabe. Mas o neurótico é aquele que não se conforma com que o Outro não saiba. (sem IX, p. 215)

Uma das consequências da frustração assim experimentada, é que o sujeito vai tomar o desejo enigmático do Outro como integrante do circuito das demandas, e vai fazer do seu próprio desejo uma demanda no Outro. (Figura 02) No Seminário “A identificação”, Lacan recorre a dois toros que se entrelaçam para demonstrar essa relação que ocorre a partir de uma inversão: desejo num, demanda no outro; demanda de um, desejo do outro, que é o nó onde se atravanca toda a dialética da frustração. A segunda consequência é que esse vazio que corresponde ao desejo do outro, vai, em parte, ser reduzido a um significante, o falo, que passa a ser agora “o objeto metonímico de todas as demandas”. (Sem IX, p.200)

É sobre esse movimento que a operação da castração vem incidir para, fazendo atravessar-se ai o registro da Lei, que irá permitir com que o sujeito escape à essa relação de engodo. Ela implica em que a demanda do Outro seja tomada como desejo pelo sujeito, e essa demanda, Lacan a explicita, se formula assim: “tu não desejarás aquela que foi o meu desejo.” Isso tem uma função de corte. É isso que o mito do Édipo vem a ocupar, sendo necessário que, doravante, seja o pai morto quem venha desempenhar essa função de Lei, que permite o advento do desejo. 

Como elaboramos em nosso trabalho apresentado no encontro da EPFCL-Brasil do ano passado, o neurótico, ao se defrontar com a falta, com o impossível de dizer, recorre ao pai para interditar aquilo que supõe correr o risco de gozar. No entanto, é essa própria impossibilidade que impõe a criação do mito do pai gozador, seu assassinato e consequente instauração do pai simbólico. Todo o mito é construído, afirma Lacan, para velar essa falha, fazendo com que aquilo que era impossível, surja como interditado.

É por isso que o Outro enquanto coisa interditada e o Outro enquanto Lei são a mesma coisa, porque o Outro só existe enquanto efeito de linguagem e é por uma operação de metáfora que ele constitui ao mesmo tempo, a coisa interditada e a lei a que a interdita. Operação que vimos materializar-se na operação do corte no Crosscap, que produz ao mesmo tempo a banda de moebius (por onde passeia o inseto) e essa pecinha faltante (o a) . (Figura 03)
Figura 03


Os Labirintos de Ophélia


Ofélia é uma personagem, fruto da criação artística do diretor espanhol Guillermo Del Toro no Filme “O Labirinto do Fauno”. O cenário é o da guerra civil espanhola. O pai de Ofélia, um alfaiate, morrera há alguns meses e sua mãe fica grávida de um dos clientes do marido: o temível capitão Vidal. Vidal é um dos comandantes do exército franquista, conhecido por sua crueldade e responsável por exterminar os rebeldes contrários ao regime do ditador espanhol.
A gravidez apresenta-se como de alto risco, mas mesmo assim, Vidal decide levar Ophelia e sua mãe para morar com ele em uma instalação militar, no meio da floresta. Chegando lá, sua primeira providência é separar mãe e filha, sob o argumento de que esta precisa de repouso absoluto. Ophelia, sentindo-se sozinha naquele ambiente hostil, consegue driblar a separação imposta pelo capitão e consegue chegar ao quarto da mãe que está muito fragilizada pela gravidez e pela viagem. Nesta cena que abre todo o desenrolar do filme, a menina pergunta á mãe: porque tivemos que vir pra cá? Por que você teve que casar com ele? Ao que a mãe responde que se sentia muito sozinha depois que o pai morreu. Ophelia, um tanto quanto admirada, interpõe: sozinha? Mas você tinha a mim! Ao que a mãe responde: existem coisas que uma mulher precisa que você só vai entender quando crescer.
o Fauno
Deparada ao mesmo tempo com a fragilidade da mãe e com seu desejo enigmático, Ophelia mergulha em mundo de fantasias onde conhece o Fauno, uma criatura metade humana, metade bode, que a convence de que ela é a princesa perdida do reino subterrâneo e que precisa realizar três tarefas para retornar para seu reino.
Uma dessas tarefas consiste em resgatar um certo punhal mágico. Nessa que é uma das mais belas e impactantes cenas do filme, Ophelia precisa atravessar um portal para procurar o punhal, mas é advertida pelo Fauno de lá encontrará um grande banquete exposto: ela não deve, em hipótese alguma, comer nada. 



Chegando lá, ela encontra o tal baquete e uma figura estranhíssima que jaz inerte na cabeceira da mesa. O monstro horrível tem apenas dois buracos no lugar das narinas e um outro no lugar da boca. Sobre a mesa, em um prato estão dois olhos arrancados. Nas paredes imagens de infanticídio anunciam o que está por vir. Apesar de todo o horror da cena, Ophelia transgride a proibição do fauno e come uma uva. Nesse momento o monstro toma vida, coloca os dois olhos que estavam na mesas em buracos na palma da mão e começa a perseguir Ophelia e as fadinhas que a auxiliam na tarefa.

Figura 04 - Santa Luzia de Zurbaran
Essa cena aporta os elementos que se encontram no ponto mesmo onde surge o sujeito. Após se deparar com o desejo enigmático do Outro (tem coisas que uma mulher precisa...), a pulsão é forçada a realizar uma torção: “Por um reviramento que não é uma simples negação da negação, a potência de pura perda surge no resíduo de uma obliteração.” (A significação do falo, p. 698).  A ausência do objeto ali onde ele era buscado impõe à pulsão um retorno: “assim, o curso se completa quando o ciclo pulsional atinge o ponto de partida, a saber, a fonte pulsional. E, no exato momento em que o circuito se fecha, um efeito se inscreve no lugar de onde brotara o empuxo. Esse ponto concerne ao sujeito. (Godino, p. 68)
Pulsão escópica e pulsão oral convergem na sedução de um fausto banquete. Os olhos arrancados sobre o prato, assim como na “Santa Lucia” de Francisco de Zurbarán que encontramos no Seminário da Angustia (Figura 04) , apontam para esse objeto que cai do sujeito em sua relação com o desejo, objeto ao qual o sujeito é reduzido na cena fantasmática que suporta seu desejo.  
Figura 05- Cronos devorando seus filhos de Goya
Ainda nessa cena, somos presenteados pelo diretor com uma representação de “Cronos devorando seu filho” (figura 05) de Goya, onde monstro arranca e come a cabeça de uma das fadinhas, enquanto Ophelia, por muito pouco, consegue escapar. Está feito. O pai primitivo comparece em sua função castradora e Ophelia agora “sabe” que “Dizer que o Outro é a lei ou que é o gozo enquanto proibido, é a mesma coisa.” (Lacan, Sem IX, p. 241)
O que se segue no filme tem todos os elementos do romance familiar do neurótico: o desejo da morte do irmão, a fantasia de pais melhores que os seus (rei e rainha) e o grand finale onde Ophelia se oferece em sacrifício no lugar do irmão: instauração do Supereu como introjeção da lei e imperativo de gozo.
O artista sempre antecipa o psicanalista, embora o faça sem saber....


O PARADOXO DO GOZO E O ENIGMA DE SUA RELAÇÃO COM A LEI


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
(Manoel de Barros, 1993)


O objetivo deste texto é tomar a expressão “paradoxo do gozo” utilizada por Lacan no seminário sete para examiná-la em sua relação com a lei, relação esta que, neste mesmo seminário, é apresentada como sendo da ordem do enigma.
Examinemos, em primeiro lugar, o que é um paradoxo. A doxa, como se sabe, deriva do grego e refere-se a uma opinião ou crença comum. Esta crença comum, por sua vez, depende diretamente da articulação entre dois aspectos: o bom senso e o senso comum. No livro intitulado A Lógica do Sentido o filósofo francês contemporâneo de Lacan, Gilles Deleuze (1974), define esses elementos da seguinte forma:
a) o bom senso se caracteriza pela afirmação de uma direção possível, de um senso único. Essa direção vai do mais diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao regular, do passado ao futuro. Ela exprime a existência de uma ordem de acordo com a qual é preciso escolher uma direção e se fixar a ela.
 b) Já o senso comum se caracteriza pela suposição da existência de uma subjetividade e de uma objetividade partilhadas. No plano subjetivo, parte da consideração de uma unidade capaz de dizer “Eu”: “é um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe etc.; e que respira, que dorme, que anda, que come...” Correlativamente, no plano objetivo, o bom senso refere-se também a unidade do objeto ou de mundo:  “é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro... e é no mesmo mundo que respiro, ando, fico em vigília ou durmo, indo de um objeto para outro segundo as leis de um sistema determinado.” (Deleuze, 1974, p. 80).
Há ainda uma solidariedade entre o bom senso e o senso comum para engendrar o que é da ordem do sentido. É a partir da articulação entre essas dimensões que implicam na suposição de uma ordem e de uma permanência, que se pode jogar o jogo do sentido. Pois bem, o paradoxo se define exatamente por se opor a esses dois aspectos da doxa, tanto ao bom senso como ao senso comum. Primeiramente porque ele não supõe mais uma direção única, nem mesmo uma direção contrária. A potência do paradoxo consiste em apontar dois sentidos e duas direções ao mesmo tempo. Em segundo lugar, porque no terreno do paradoxo as identidades se dissolvem.
Como afirma Deleuze (1974, p. 94):
“O paradoxo é a subversão simultânea do bom senso e do senso comum: ele aparece de um lado como os dois sentidos ao mesmo tempo do devir-louco, imprevisível; de outro lado, como não-senso da identidade perdida, irreconhecível. Alice é aquela que vai sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo: O país das maravilhas (Wonderland) tem uma dupla direção sempre subdividida.”
Ainda assim, o paradoxo não é exatamente contraditório – o que implicaria em uma anulação de seus enunciados. Na verdade, ele aponta para o plano do impossível, lá onde se pode assistir à gênese da contradição: “É contudo aí que se opera a doação de sentido, nesta região que precede todo bom senso e senso comum. Aí, a linguagem atinge sua mais alta potencia como paixão do paradoxo” (Deleuze, 1974, p. 94).
Ou, como ensina Manoel de Barros[1] (1996, p.47), o paradoxo é o “criançamento das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna”. É quando a criança “garatuja o verbo para falar o que não tem”. Salve o poeta, que nos ensina de forma tão mais bela aquilo que quebramos a cabeça para formular teoricamente!
Oportuno também a referência ao infantil que esse poema traz, pois é nesse terreno que estamos quando se trata do inconsciente. E é ele que interessa quando Lacan interroga as relações entre desejo, lei e gozo para formulá-las em termos de paradoxo e enigma. Passemos, então a examiná-las.

O nó entre Gozo, Desejo e Lei
Primeiramente, tomemos a reação entre lei e desejo. Ela remonta aos primórdios da psicanálise, desde que Freud, em sua correspondência com Fliess, elabora o complexo de édipo como núcleo da neurose. A universalidade da paixão pela mãe e do desejo de matar o pai, faz de cada um de nós, em germe ou em fantasia, um personagem da tragédia grega Oedipus Rex (Freud, 1897/1980).
O pai abusador antes anunciado na teoria da sedução é substituído pelo pai que interdita a mãe para o filho, lançando-o na tarefa de encontrar um substituto para o objeto perdido. Alguns anos depois, Freud elabora outra versão do pai, aquela encontrada em Totem e Tabu (1912-14/2012). Aqui também está em jogo o desejo pelas mulheres inacessíveis e o assassinato do pai como medida tomada pelo filho para ter acesso a elas. No entanto, o crime cometido, ao invés de liberar o acesso ao objeto, invade os filhos com uma culpa que vai levá-los a invenção do pai totêmico, pai simbólico portanto, que passa a reger as relações entre os membros da tribo.
Pai sedutor, pai interditor, pai gozador, são as pére-versions freudianas que aparecem como tentativa de dizer a verdade da neurose ao longo de sua obra, apontando para seu “desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose.” (Freud, 1897/1980, p.350). Essa frase, diga-se de passagem, surge na carta 64 à Fliess, a mesma em que Freud afirma estar perto de descobrir a origem da moralidade (o que sabemos, vai desembocar na formulação do Complexo de Édipo).
Apesar da última dessas versões já apontar para a ineficácia do assassinato do pai para o acesso ao objeto interditado, ainda temos presente ai uma situação em que um desejo pré-existente é impedido pelo pai que, esse sim, goza: “Um pai violento e ciumento, que reserva todas as fêmeas para si e expulsa os filhos quando crescem, eis o que ali se acha.” (Freud, 1912-14/2012, p. 216).
O pai como agente da lei também está no cerne dos interesse do estudo de Jacques Lacan que retomou o édipo freudiano extraindo daí o que é da ordem da estrutura. No Seminário 5 (Lacan, 1957-58/1999) temos uma elaboração que vai apontar para o lugar ocupado pelo pai em termos de função. Já não se trata mais da pessoa do pai da realidade, mas do suporte de uma lei simbólica que se dirige concomitantemente à mãe e ao filho: para a primeira – “tu não reintegrarás o produto do teu ventre”; para o segundo – “tu não te deitarás com tua mãe”. O pai surge diferenciado em suas dimensões imaginária, simbólica e real, sendo que é na dimensão simbólica, como Nome-do-Pai que ele se coloca como conferindo autoridade à lei. Tomar o Édipo enquanto arranjo simbólico talvez seja o primeiro passo de um caminho que vai permitir à Lacan ir além de Freud no que tange aos objetivos de uma análise.
Ainda no seminário 5, Lacan afirma, com o Freud de Totem e Tabu, que o pai que promulga a Lei é o pai morto, o que já começa por introduzir um paradoxo que ele só retomará no Seminário 7: se o assassinato do pai se dá pela cobiça do objeto cuja posse a ele pertencia, como poderia a cobiça (enquanto desejo) existir aí se é somente depois de morto que ele instaura a lei que permite desejar? Temos então duas afirmações paradoxais: a) O pai morto é que instaura a Lei que interdita o gozo; e b) É somente porque a Lei existe que o gozo se anuncia como transgressão.
Foi preciso dar mais um passo na incursão que levará Lacan a formular o campo do gozo, como campo lacaniano. No Seminário 7 (Lacan, 1959-60/1991) ele faz referência à conferência proferida em 1960 em Bruxelas (publicada com o título de Discurso aos católicos) onde recorreu a um trecho de uma epístola de São Paulo aos romanos para apontar essa relação paradoxal entre o desejo, o objeto e a lei:
“Que Diremos então? Que a Lei é pecado? De modo algum. Mas eu não conheci o pecado senão pela Lei. Porque não teria ideia da cobiça se a Lei não me tivesse dito “Não cobiçarás’. Foi o pecado, portanto, que aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo preceito excitou em mim todo tipo de cobiças. Pois sem a Lei, o pecado não vive. Sem a Lei, eu vivia. Mas quando o preceito adveio, o pecado recobrou vida, ao passo que eu encontrei a morte.” (Lacan, 1960/2005, p. 24-25)
Lacan nos sugere substituir o significante “pecado” pelo termo da “Coisa” para termos aí uma indicação bem clara do nó do desejo com a Lei. O gozo da “Coisa” não existia antes que a Lei se instaurasse. Pelo contrário, é porque a lei existe que o gozo pode surgir como transgressão, ainda que “em germe ou em fantasia”, como é o caso do neurótico. O neurótico, conjuga o verbo pecar (ou gozar) no tempo verbal que só existe na gramática infantil e que foi poeticamente formulado por Chico Buarque[2] em “João e Maria”: agora eu era...agora eu era herói, agora eu tinha acesso ao gozo, só que num tempo passado que só passou agora a existir. O paradoxo do gozo aponta, portanto, para um paradoxo do desejo, que só pode se formular como wunsch, como o voto expresso na gramática do “agora eu era”.
Voltemos para finalizar à relação o paradoxo com o impossível de onde brota o sentido. O paradoxo não é escravo do bom senso, nem do senso comum. Ele aponta para um não-senso, para uma verdade que, embora impossível de ser toda dita, exige que algo possa, ali, ser formulado. No caso do paradoxo que enoda Lei, desejo e gozo, a verdade que jaz impossível de ser toda dita aponta para o encontro com a falta de um significante que possa nomear o gozo.
O neurótico, ao se defrontar com a falta, com o impossível de dizer, recorre ao pai para interditar aquilo que supõe correr o risco de gozar. Assim,  
Para que algo da ordem da lei seja então veiculado preciso que passe pelo caminho traçado pelo drama primordial articulado em Totem e Tabu, ou seja, o assassinato do pai e suas consequências, assassinato, na origem da cultura, dessa figura da qual não se pode deveras nada dizer, temível, temida assim como incerta, a do personagem onipotente, semi-animal da horda primordial, morto por seus filhos. (Lacan, 1959-60/1991, p.211)
No entanto, é essa própria impossibilidade que impõe a criação do mito do pai gozador, seu assassinato e consequente instauração do pai simbólico enquanto morto. Todo o mito é construído, afirma Lacan, para velar essa falha, fazendo com que aquilo que era impossível, surja como interditado: “Esse ato constituía todo o mistério. Ele é feito para nos velar isto, que não apenas o assassinato do pai não abre a via para o gozo que sua presença era suposta interditar, mas ele reforça sua interdição”. (Lacan, 1959-60/1991, p.211)
 Sim, o pai está morto, mas se ele está é porque o é desde sempre. Como afirma Lacan (1959-60/1991): “ele nunca foi pai a não ser na mitologia do filho”.

Considerações Finais
O paradoxo, portanto, brota ali onde uma falha se faz presente, opondo-se tanto ao bom senso, como ao senso comum, resistindo ao fechamento do sentido, apontando para o impossível de dizer tudo, o impossível da relação sexual. Em psicanálise sabemos que a castração é o nome dessa falha.
O neurótico, por sua vez, é aquele que constrói uma resposta frente a essa falha, ao articulá-la ao mito do assassinato do Pai. Pai morto, pai simbólico, é ele enquanto “Nome-do-pai” que vai permitir os deslizamentos e pontuações da cadeia significante, permitir com que se continue jogando o “jogo do sentido”. É só então que podemos falar de uma transgressão que “terá havido” quando do assassinato do pai. Diante da verdade em sua face medusante, o neurótico cria. Estamos diante do paradoxo em que Lei, desejo e gozo se articulam. 
E como ao abordar de frente à verdade precisamos sempre de alguma proteção que nos impeça de cegar, recorramos mais uma vez ao poeta, para que ele contornando o impossível com suas palavras, nos permita o véu da beleza:
Ando muito completo de vazios.

Meu órgão de morrer me predomina.

Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.

Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.

Atrás do ocaso fervem os insetos.

Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.

A minha independência tem algemas.
(Manoel de Barros, 1993)



REFERÊNCIAS

BARROS, M. O livro das ignorãças. 3ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
___________. Livro sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1996
DELEUZE, G. A Lógica do Sentido. Perspectiva: São Paulo, 1974.
FREUD, S. (1888-1893). Cartas a Fliess – cartas 64 e 71. In: Obras Completas, Ed Standard Brasileira, vol. I, Rio de Janeiro, Imago, 1980.
FREUD, S. Totem e Tabu (1912-14). In: Obras Completas, Vol. 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Rio
de Janeiro, Zahar Ed., 1999.
_________. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de
Janeiro, Zahar Ed., 1991
_________. O Triunfo da Religião, precedido de Discurso aos Católicos (1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.


[1] Manoel de Barros é um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, nascido em 1916, em Cuiabá, no estado de Mato Grosso.
[2] Compositor do cancioneiro popular brasileiro.

Vendo vozes...e aprendendo com elas!

Acabo de terminar uma viagem por um mundo que me era completamente desconhecido até então. Essa viagem foi proporcionada por uma amiga querida a quem deixo aqui meu agradecimento: Renata Castelo Peixoto*.
 
Há algum tempo, não sei (ou não sabia) dizer porque, senti um vago interesse em saber alguma coisa sobre o universo dos surdos, principalmente em saber se seria possível a experiência da psicanálise para essas pessoas. Foi assim que, numa conversa informal, comentei com essa colega (que é uma pesquisadora da área) sobre minha curiosidade e ela, além de me dizer coisas que aguçaram ainda mais meu interesse, me emprestou esse livro: Vendo Vozes, de Oliver
Sacks.

Devo confessar que essa leitura me veio como um tapa na cara! Eu me assustei em perceber como eu tinha uma visão preconceituosa acerca dessa realidade. Para mim, acho que assim como para a maioria dos leigos ouvintes, o surdo era um deficiente. Mas o que aprendi é que, na verdade, ser surdo é (ou pode ser, desde que dadas as condições para isso) uma autêntica identidade cultural. Não no sentido dos famosos "orgulhos" com que se pintam as bandeiras de determinadas causas que as vezes escorregam no proselitismo. Mas uma identidade cultural no sentido de que é a nossa língua quem nos dá um sentimento de pertença a uma determinada cultura, com todas as suas produções ético-estético-políticas. Como diz o autor em determinado trecho: não é a mesma coisa pensar na língua de Shakespeare ou na língua de Goethe. Minha língua sou eu!

E eu que já havia sido fisgada há algum tempo pela psicanálise, principalmente pelas lentes lacanianas, descobri que podia ir aprender muito sobre essa relação "subjetividade"x linguagem nesse contato com o universo dos surdos. 

Sabemos com Lacan, por exemplo, que a linguagem não é a mera emissão de sons, nem mesmo a emissão de mensagem. A linguagem é o que constitui o sujeito na relação com o outro. Sabemos também que é no corpo-a-corpo erotizador com a mãe que a criança recebe seu banho de linguagem, sua lalíngua, como o psicanalista francês chamou essa primeira inscrição de significantes que, apesar de ainda não formarem um léxico, marcam o gozo no corpo. Será então que isso seria impossível aos surdos? estariam eles (os surdos pre-linguísticos, ou seja, aqueles que nasceram ou tornaram-se surdos antes de aprender a falar) impossibilitados de entrar na linguagem por não ouvirem?

O estudo de Oliver Sacks (ou sua leitura dos estudos realizados por tantos outros)não só responde negativamente a essas perguntas, como atestam as teses lacanianas com uma radicalidade quase cruel: a criança surda não se torna uma exilada da linguagem simplesmente por não ouvir. Mas, quando não exposta a algum tipo de linguagem de sinais até determinado momento de vida, pode ter seriamente prejudicadas suas capacidades de abstração, de representação do mundo, de fazer ou entender a estrutura de uma pergunta, de questionar, de saber que existe um nome para ela e para todas as coisas do mundo. Isso explica porque tantas crianças surdas sejam tratadas como deficientes mentais, pois sabemos, desde Freud que é o processo de curiosidade acerca do mundo que leva à constituição do sujeito.

A impossibilidade de comunicação com os pais pode se abater como uma tragédia sobre a criança surda que fica impossibilitada de dizer de si e do mundo. Fiquei pensando como todos nós, ouvintes ou não, experienciamos de alguma forma, isso. Todos nós experimentamos em algum momento da vida essa impossibilidade de dizer algo e de se fazer ouvir, o que nos deixa sozinhos do lado de fora. Certamente isso é mais radical para uma criança surda, pois se é na linguagem que experienciamos o trauma daquilo que não cabe em palavras, é através delas que sobrevivemos a isso e nos tornarmos sujeito de desejo. 

A criança surda pode entrar na linguagem, comprovam os estudos citados por Sacks. Mas isso só ocorre se ela for exposta a um outro que "fale" numa língua que ela possa apreender com outros sentidos que não o da audição Embora nasçamos com um aparelho biológico que nos permite falar, a linguagem não é um processo natural! Ela envolve necessariamente o tête-a-tête com o outro.

Assim, os estudos também comprovam que basta que essa criança seja exposta a uma "língua de sinais" no contato com a mãe para que o processo de aquisição da linguagem se dê, de forma similiar ao de qualquer outra criança. E traz exemplos de casos muito bonitos como o da pequena Charlotte: perguntadora, cheia de criatividade e de vida!

Aprendi também, na leitura desse livro, que as "línguas de sinais" não são chamadas assim por acaso. Elas não são uma pantomima como pode parecer ao leigo ouvinte. Não se trata de mímica. Elas tem realmente a estrutura de uma língua com uma gramática própria, sujeito e objeto, presente passado e futuro, conjugação verbal e, pasmem, tudo isso é feito utilizando-se do corpo, do tempo e do espaço. 

O cérebro aprende a processar todos esses elementos e combiná-los na constituição de uma linguagem que vai muito além da nossa capacidade de apreensão pois simplesmente não desenvolvemos essas ferramentas: "Ser surdo, nascer surdo, coloca a pessoa numa situação extraordinária: expõe o indivíduo a uma série de possibilidades linguísticas e, portanto, a uma serie de possibilidades intelectuais e culturais que nos outros, como falantes nativos num mundo de falantes, não podemos sequer começar a imaginar."

É realmente surpreendente! De repente, nós ouvintes é, de certa maneira, somos deficientes frente ao mundo dos surdos.

Eu não tenho nenhuma experiência com surdos, não tenho parentes surdos nem amigos surdos, mas de alguma forma meu desejo foi despertado para conhecer esse mundo. E, ali onde eu pensei que fosse encontrar informações técnicas sobre uma deficiência, esse livro me mostrou o quanto tenho a aprender acerca da diferença e do que é possível quando nos abrimos à ela.  Aprendemos, inclusive que podemos não ser tão diferentes assim e que, de repente, aquilo que parecia tão estranho, pode nos ser, na verdade, intimamente familiar. Assim já dizia Freud, não é mesmo?

PS: não foi só com os surdos que me descobri preconceituosa. Também tive que engolir também minhas pre-concepções acerca de neurocinetistas! Enquanto me deliciava com o livro, descobri (por uma triste coincidência) que Oliver Sacks não só é um excelente escritor, mas um ser humano admirável. É que nesse mesmo tempo em que escrevo, Sacks vive seus últimos dias de vida, vítima de uma câncer em estágio terminal. E ele deixa uma carta de adeus muito linda, com um sentimento de gratidão que só os grandes homens podem ter diante da vida e de seu fim: "Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado; recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi. Tive uma relação com o mundo, a relação especial de escritores e leitores."

Segue o link para quem quiser lê-la na íntegra:http://www.papodehomem.com.br/oliver-sacks-diante-da-morte/
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*Renata possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (1998), especialização em psicopedagogia(2004) e mestrado em Educação pela UFC (2004). Atualmente é doutoranda em Educação Brasileira na UFC. Tem experiência nas áreas de Educação e de Psicologia, com ênfase em Educação de Surdos, Ensino de linguagem e Psicolinguística, atuando principalmente nos seguintes temas: surdez, leitura e escrita, psicologia do desenvolvimento/aprendizagem, alfabetização e ensino de português para surdos.