sexta-feira, 3 de novembro de 2017

As três de Sampa, ou um resumo das conferências de Bernard Nominé em SP a partir de minhas anotações pessoais

 

"E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso"
(Sampa - Caetano Veloso)

Três conferências, três amarrações. As conferências de Bernard Nominé em São Paulo no último fim de semana tiveram para mim a estrutura de um nó. Não somente por se encadearem umas às outras, mas especialmente por terem a função de mostrar um real em jogo na formação que vai além de qualquer possibilidade abordagem através da significação. O nó não demonstra a estrutura, ele é a estrutura. Passo a apresentar aqui um resumo do que ouvi. Certamente não se trata de uma transcrição exata do que foi dito, mas aquilo que consegui ouvir no que Nominé disse. Nesse movimento sempre se perde algo, mas espero que possa ser útil em transmitir um pouco da vivacidade da experiência que esses dias presentificaram para mim.
Bernard Nominé e a demonstração do nó
A primeira conferência, proferida na PUC, “Função do tempo no desejo e seu uso na cultura hoje”, apresenta o tempo como um elemento que participa daquilo que causa nosso desejo. O tempo pode ser tomado na sua vertente simbólica como aquilo que os governantes se esforçaram em sistematizar, organizando-o em seus calendários. Esse é puramente simbólico. Trata-se de uma escrita, um calculo matemático que fatia o tempo de acordo com os acontecimentos naturais (as fases da lua, o dia e a noite, as colheitas, etc.)

Mas o tempo tem uma dimensão real como objeto que não é controlável e, no entanto, nos define. E isso não da mesma maneira para todos. Temos um prazo de vencimento que queremos todos esquecer. É assim para o obsessivo, em seu jogo de procrastinação, para a histérica que se lança na antecipação e para o fóbico que tenta suspender o tempo na prevenção. De todo modo, o neurótico é aquele que nunca está na hora de seu desejo pois acerta seu relógio pela hora da demanda do Outro.
Ao mesmo tempo real e pura abstração é assim que nos dividimos entre o tempo de cada um e a hora que é para todos. De todo modo, o tempo nunca será suficiente, sempre nos faltará tempo para ser. O momento final nunca é e nunca será contado por aquele que vive. Ainda assim é um momento de verdade que impele o sujeito a estar na hora de seu desejo.
Recorrendo às elaborações de Santo Agostinho em suas “Confissões”, Nominé começa a construir uma abordagem borromeana do tempo. Para o filósofo, na experiência humana é possível falar de três “presentes”:
·              Presente do passado – é a nossa memória
·              Presente do Presente – é a intuição
·              Presente do Futuro – é a esperança, a expectativa
Para a psicanálise, o real do tempo cria uma divisão no ser falante e Nominé vai propor que abordemos as categorias agostinianas da seguinte forma:
·              O presente do passado, ser de memória, é puramente simbólico
·              O presente do futuro, como aquilo que so pode ser imaginado, é o imaginário
·             O presente do presente, como real, faz-se permanentemente e só ex-iste deixando de ser. 
Nominé inclui ainda um tempo verbal bastante explorado por Lacan que é o futuro anterior, ou em português, o futuro do presente composto, aquele que é expresso na frase “Eu terei jantado quando ele chegar”.
 
O tempo e o nó
O que se realiza em minha história é o nó entre presente passado e futuro, incluindo o futuro anterior. O que ata os três registro é o dizer. Dizer cedo demais pode não ter efeito algum. Dizer tarde demais não tem mais nenhuma serventia. O dizer da enunciação só tem efeito se chegar no momento certo. O bom momento não é o analista quem decide, é o analisante que lhe sopra.
O real do tempo, o presente do presente, é o que o neurótico evita viver e é o que todas as intervenções do analista tentam delimitar. O analista tem um manejo desse real do tempo. A transferência é uma relação essencialmente ligada ao tempo e seu manejo.  O analisante precisa se haver com seu presente do presente em presença do analista. O Ato do analista deve incidir no momento certo para ter um efeito. A presença do analista se associa ao presente do analisante. Poder viver o presente do presente,  estar na hora de seu desejo é o que a análise pode oferecer a quem atravessa a experiência.
A segunda conferencia, proferida no sábado de manha na USP, tratou sobre “O Corpo, o significante e a letra”.  Nela Nominé começa falando dos efeitos do inconsciente simbólico sobre o corpo e diz que esses podem ser esses efeitos podem ser interpretados em termos de insatisfação sexual.
O nó borromeu
O sujeito tem um corpo. Ele não é um corpo. Essa relação do sujeito com o corpo pode ser tomada em termos de uma estrutura de discurso, a partir do discurso do mestre. O discurso do mestre articula a relação do corpo com o gozo, ao tomar o primeiro como simbólico.
O mestre é o protótipo daquele que domina seu próprio corpo. Ele renuncia ao gozo do corpo em prol do gozo do prestígio, isto é, o gozo do significante mestre. O escravo, ao contrário, é aquele que prefere a vida ao puro prestígio. Ele é definido pelo gozo, mas perde a liberdade de seu corpo. 
O mestre se priva do gozo e, o escravo, da liberdade. O corpo do escravo passa a ser metáfora do gozo do mestre. Mas atenção, mestre e escravo não devem ser tomados aqui como duas pessoas. Somos todos escravos do mestre (salvo algumas exceções), pois temos que recorrer ao significante para sustentar nosso corpo como simbólico. O S1 é o ideal, significante mestre como aquele que supostamente conseguiu vencer o gozo. Já o S2 é o corpo como outro, marcado pelo carimbo do significante ideal. S2 é o corpo simbólico.
Nominé fala que em algumas situações o sujeito pode querer tentar reduzir todo o ser a esse corpo do simbólico, mas que isso é um risco mortal e exemplifica isso com o livro de Yukio Mishima “Confissões de uma Máscara”. Nele o autor relata suas relações com os valores tradicionais do Japão e como esse ideal acaba levando-o ao suicídio através do ritual do sepuku.
Yukio Mishima
Essa dialética do senhor e do escravo, luta por puro prestígio, não é humanamente sustentável. Lacan vai se afastar de Hegel, portanto, exatamente ao introduzir nessa dialética a subjetividade do escravo. Na dialética hegeliana não entra o gozo do escravo, apenas o gozo de seu corpo que é atribuído ao mestre. Lacan vai tomar o escravo como sujeito.
O gozo próprio ao escravo permanece a deriva, escapa a dialética hegeliana e difere do gozo do corpo do escravo. Esses dois gozos não são intercambiáveis, o que é um modo de dizer que a relação sexual não existe.
O Escravo gozo fora de seu corpo que é aquele do gozo do mestre. Sendo assim há uma parte de seu ser que escapa ao mestre. Esse gozo se condensa num objeto a ser situado fora do corpo, objeto que e;e não sacrifica pelo mestre. Esse objeto não faz parte do corpo simbólico e permite ao escravo não se confundir com o que é sacrificado pelo mestre. Trata-se do gozo da vida, suporte do mistério do corpo falante.
Para Nominé essa escrita é aquela de “um”, que se dá completamente no particular. O que ata o sujeito ao corpo é algo que é produto dessa alienação, mas que também lhe escapa. O inconsciente é uma formação de compromisso: ao mesmo tempo em que serve ao outro fazendo metáfora do gozo do outro, ele também se serve disso para fazer “dis-corps”, dis-corpo, um corpo discordante. O inconsciente fabrica sentido a partir desse gozo discordante, que permanece à deriva. O sintoma é aí a resposta possível, ainda que fantasiosa, ao real do corpo que escapa, remendando a relação esquartejada do corpo com o gozo.
 É o nó borromeano que vai permitir melhor apreender qual a função desse gozo discordante. É ele que vai ocupar o lugar de amarração entre real, simbólico e imaginário. É o objeto a que assegura a função do nó. Objeto de separação, mas que também assegura a junção do sujeito com seu corpo. 




O Objeto a no centro do nó borromeano

Embora possam parecer a primeira vista, o nó borromeano e o círculo de Euler são diferentes. O nó borromeano é algo que se pode apertar e reduzir a um ponto bem apertado. É preciso para ter uma representação do mundo que se sustenta é preciso ter uma representação de si mesmo que seja consistente, amarrando os registros do imaginário, do simbólico e do real.
·      Registro do imaginário: Nascemos imaturos neurologicamente, é o estádio do espelho, desenvolvido por Lacan, que vai nos assegurar a ilusão de uma imagem.
·       Registro simbólico: é o registro onde se localiza a morte. O corpo simbólico não é um corpo vivo, ele é mortificado pelo simbólico. Não se pode localizar o gozo ai, no entanto se pode gozar dele, do reconhecimento de seu ser no Outro, como Ideal. O corpo imaginário e o corpo simbólico estão ligados entre si. É o real que liga a imagem do corpo ao significante do Ideal.
·       Registro do real: é o corpo que vive sem pedir nossa opinião. Não é apreendido na imagem que fazemos de nós mesmos e também transborda o corpo simbólico que nos foi reservado.
  
Utilizando-se de uma vinheta clinica, Nominé passa em seguida a articular no nó borromeano os outros gozos que aí consistem. O gozo fálico está fora da imagem do corpo. É anomálico ao gozo do corpo e mostra a cada um os limites de seu próprio corpo. O falo não é um órgão, mas uma função simbólica regulada pelo Outro. É a castração que vem fazer limite ao campo do imaginário. É o objeto a que separa o gozo fálico do campo do Imaginário.
Nominé toma a clinica da histeria para exemplificar essa elaboração do nó e toma o conceito de Entgegenkommung utilizado por Freud para falar dessa experiência do corpo. Trata-se daquilo que foi traduzido como “complacência somática”, mas que a ele parece uma tradução insuficiente, pois em alemão a palavra remete a “concessão”, “boa vontade” e também “vir ao encontro”. Mas trata-se de algo que trata das relações do somático com o psíquico no sintoma histérico. É o que fixa o sintoma histérico a uma significação e dai que surge a repetição. O sentido em si mesmo nunca é fixado, ele foge. O trauma não é a excitação corporal, mas a significação que é atribuída a ele. A parte do corpo tomada no sintoma é como o grão de areia em torno do qual a ostra vai produzir a pérola. Está em Freud essa metáfora.
Mas para Lacan a complacência somática se trata, antes, de uma recusa do corpo. A histérica é aquela que, com seu corpo, recusa em participar totalmente do gozo do Outro (embora ela se preste a ele de outro modo, com suas intrigas).
Para Nominé, a complacência somática  é a participação do corpo real no sintoma histérico. Ela está em concordância com a estrutura da cadeia borromeana. O sintoma histérico da um gozo de sentido ao gozo real. O corpo se põe a imitar o encontro de corpo a corpo que a histérica recusa.
Por fim , Nominé vai localizar em relação ao nó Borromeano como se dá a função da análise e a intervenção do analista. O analista, segundo ele, deve ensinar o analisante a “épisser”. Palavra que em francês tem o sentido de “emendar”, mas também faz homofonia com “épicer” que significa “temperar”, colocar especiarias.
A introdução do ato analítico não desfaz o nó. Pelo contrário, isso fica firme. Trata-se de levar o analisante a fazer a sutura entre seu sintoma e o real parasita que habita seu corpo. É de suturas e emendas que se trata a análise. Isso se faz reduzindo e cortando o ponto em que o neurótico situava o gozo do Outro, pois o Outro do Outro não existe. Essa operação amarra o  o gozo fálico com o gozo do sentido, apertando o nó em torno do que causa o desejo, ou seja, do objeto a.
O corte e a emenda do nó

 A interpretação tem a estrutura de um chiste. Não é por meio da significação que ela participa do nó, mas da sonoridade do significante, e essa sonoridade procede de uma letra.
Por fim, tivemos ainda a realização no Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo da conferência intitulada “Saber fazer ou saber fazer com”. Nominé começou essa conferencia lembrando o dever de interpretar do analista. E ele se pergunta: será que a interpretação depende de um saber fazer?  
Ele responde dizendo que o saber-fazer é a coisa do especialista do expertisse. O que está em jogo na interpretação é de outra ordem, o saber fazer com (savoir y faire) que remete muito mais a saber se virar com algo, a algo que é da ordem da invenção, o saber se inventa.
Conferência no FCL-SP traduzida por Dominique Fingermann
O pedagogo transmite o saber. Na transmissão da psicanálise o que se transmite é antes o desejo de saber. O savoir y faire do analista também tem a ver com estar aí, no momento preciso.
O objeto a permanece inimaginável, ele é a volta não contada do toro, o centro inapreensível do crosscap. Ele ex-siste, se situa sempre ao lado (à cotê).
O centro do nó, segundo Nominé só é definível quando o nó é feito. Os nós corrediços deslizam, é preciso, portanto identificar o centro em torno do qual o nó se aperta. Trata-se de estreitar ao máximo aquilo em torno do qual o trabalho de uma análise gira.
Cada circulo do nó borromeano é, em si, um nó trivial. (pesquisando na internet encontrei que, em matemática, um nó não é um cordão enrolado, mas uma curva no espaço, fechada e que não se auto-intersecta, formando um arranjos espacial peculiar. O adjetivo trivial remete aos objetos topológicos – nós - que têm uma estrutura muito simples, que pode facilmente ser provado ou definido. A origem do termo em linguagem matemática vem do currículo trivium medieval, formado pela lógica, gramática e retórica). A cadeia borromeana é um arranjo formado por três nós triviais. Para saber mais, clique aqui. 
O nó é efeito de um dizer que causa um acontecimento. Ele também implica o tempo, que por sua vez é uma das funções do objeto a. Não é o analista que decide o momento oportuno (Kairós), é o analisante quem lhe indica sem saber
Para Nominé o esforço de Lacan em realizar essa amarração é anterior aos nós borromeus e remete a construção do grafo do desejo, mas essa tentativa se mostrou insuficiente.
O Objeto a surge de um nó de sentido, mas o cerne dessa amarração é um “pas de sense”, significante que em francês faz homofonia entre o sem sentido e um passo de sentido. É o chiste que faz aparecer o cerne do "pas de sense". Aceder a isso é contar de outra forma para saborear de outro lugar essa operação. Aquilo com que se ata o Imaginário e o Simbólico é o real do significante. Nominé da o exemplo de um chiste de um governante que morre nos braços de uma prostituta. 
A interpretação deve ter a estrutura do chiste, trazendo a surpresa. Aqui ele traz duas referencias interessantes, uma delas é a de Shakespeare: “ A fortuna de um gracejo está no ouvido de quem escuta, nunca na língua de quem o faz”. A outra referência é a de Teodor Reik , que escreveu o livro “O Psicólogo surprendido” (Clique aqui para ver uma resenha). Para Reik o psicanalista será surpreendido pelas emergências do inconsciente tanto nele mesmo, quanto no paciente. E ele deve ser capaz de permanecer se surpreendendo para permanecer agindo como analista, mantendo vivo em si mesmo o caminho iniciado durante sua psicanálise pessoal.
Essa presença do analista é ao mesmo tempo, um tempo e um lugar, um “dizer que não” que faz o corte. Para que o analista apreenda esse “saber fazer com” não basta repetir o que Lacan disse, é preciso se colocar na experiência. O sinthome elaborado por Lacan remete a que cada um saiba fazer algo de seu gozo, algo que seja suportável, tirando o melhor de si. 
E agora, finalizando o rascunho e a tentativa de amarração de tudo que ouvi e vivi de forma intensa esses dias em São Paulo, vou me aventurando a elaborar algo sobre o que estava em jogo quando pensamos na amarração borromeana dessas três conferências.

Algumas amigas que estiveram por lá

Do tempo como modo de pensar os registro do imaginário (presente do passado), simbólico (presente do futuro) e real (presente do presente) Nominé extraiu o objeto a como o atemporal de cada sujeito. Gozo discordante com a programação dos ideais coletados do Outro, é ele quem permite uma amarração possível entre s três registros, mas ao mesmo tempo mantendo uma distância necessária entre cada um deles. Essa delimitação tão clara é o que não existe sem uma análise. Sem os ditos que se desenrolam trivialmente em uma análise, repetidos à exaustão, não existe borda, não existe furo. Ou melhor, os furos estão todos recobertos, preenchidos pelo sentido atribuídos ao gozo do Outro. Cortar esse ponto de gozo e emendar de outra maneira o gozo fálico e o gozo do sentido é o que vai permitir ao sujeito inventar outra maneira de se virar com o gozo anomálico e saber fazer com isso. 
Na costura dessas três conferencias, percebi que elas se transpassam em pelo menos dois pontos (pontes e túneis?): 
1 – não basta repetir o que Freud disse, o que Lacan disse, (nem mesmo o que Nominé disse), é preciso se arriscar na experiência, experimentar. Não ter medo de se aventurar pelo desconhecido, inclusive pelo desconhecido da matemática e da topologia que as vezes provoca resistências entre nós. Urge nos dedicarmos a isso se quisermos estar a altura de nossa tarefa; 2- A interpretação é um dizer com estrutura de um chiste. Ela exige, do lado do analista, que este esteja presente no lugar certo. E do lado do analisante que seja ele a soprar para o analista que momento é esse.
Outros desdobramentos dessa experimentação que foram esses dias em Sampa certamente se farão ouvir.
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PS: os trechos das mídias divulgados nessa página foram autorizados pelo autor.

PS2: atualizando a postagem hoje, 04 de novembro, com o trabalho da artista plástica Fabiana Azeredo, intitulado "Nós do nó" ( Posca sobre papel Fabriano 22x33) inspirado na leitura do texto acima.